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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

13 de jan. de 2009

As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (VI)

Susanna (I)


Susanna era a mãe de Pasolini, ela influenciou profundamente sua visão de mundo e seu trabalho como poeta, romancista e cineasta. Podemos vê-la na tela participando em vários filmes do filho: Comícios de Amor (Comizi D’amore, 1963), O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo, 1964), Teorema (1968, imagem acima). Ela não participou em Édipo Rei (Oedipus Rex, 1967), mas Pasolini fez com que Silvana Mangano, a atriz que interpretava Jocasta, usasse roupas de sua mãe. Muito já se falou dos elementos autobiográficos nos filmes de Federico Fellini, mas no caso de Pasolini pode-se dizer que essa tendência alcança dimensões sócio-politico-antropológicas, além de psicanalíticas. Susanna é como uma chave que pode desvendar muitos elementos incorporados nas mulheres presentes nos filmes de Pasolini.

Arqueologia da Mãe

A mistura que Pasolini fez entre as dimensões privada e pública de sua vida estaria enraizada numa dicotomia entre os universos materno e paterno. Nessa dialética entre o pessoal e o político, as mulheres desempenharam o papel de mediador. Sua mãe, Susanna Colussi, é de uma família de camponeses que passou à pequena burguesia devido à produção de aguardente do pai. Já Carlo Alberto, o pai de Pier Paolo, vinha da nobreza de Ravenna (1). Mas quando ele casou com Susanna, já havia desperdiçado sua fortuna e abraçado a carreira militar.

Susanna não se casou por amor, mas por pressão social – a comunidade sabia de seu caso; além do que ela já estava com trinta anos de idade e não pretendia ficar para tia. A relação do casal não era tranqüila, o que deixou marcas em Pasolini. Susanna era uma católica não praticante, com um “sentimento religioso natural e poético”. Ela dava grande valor à lealdade, ao trabalho e ao altruísmo. Amava Pier Paolo e ele retribuía. Para Pasolini, ela sempre estava com a razão nas brigas com Carlo Alberto. Susanna amava poesia e incentivou os talentos de seu filho, que com sete anos queria ser capitão da marinha e poeta – o que mostra a vontade de juntar os dois lados de sua vida. Essa divisão acabaria por influenciar sua visão dos domínios masculino e feminino em sua poesia. A pós a morte do pai, Pasolini admitiu que a dependência em relação a sua mãe o levou a rejeitar o pai prematuramente (2).

Carlo Alberto era um militar defensor do fascismo de Mussolini. Enquanto Susanna, uma professora primária, era reservada e distante, o marido era público e irritável. Casaram-se em 1921, em Casarsa della Delizia, na região de Friuli, ao norte da Itália. Pasolini nasceu em Bolonha em 1922, mas sempre considerou Casarsa seu autêntico lugar de origem. Ele via Casarsa como uma espécie de paraíso perdido, onde nem a Segunda Guerra Mundial, nem o neocapitalismo tocariam. Sua defesa do idioma friulano seguia essa tendência também, em 1942 escreveu seu primeiro livro de poemas. Recebeu elogios, embora tenha sido considerado escandaloso (a primeira de muitas vezes que o trabalho de Pasolini recebeu esse carimbo) pelo seu conteúdo sexual misturado a imagens religiosas e elementos de morte.

Durante a era fascista, qualquer forma de regionalismo (como escrever em friulano), mesmo na literatura, era considerada uma provocação ao governo (3). Sua tese sobre o poeta Pascoli (que também escreveu em seu dialeto local), cuja temática enaltecia a infância como um período mítico-religioso onde os sentidos não estão condicionados pelo social, aponta talvez a origem da crença de Pasolini na juventude como o tempo em que se tem fé nos instintos. (imagens ao lado e acima à esquerda, Susanna como Maria em O Evangelho Segundo São Mateus)

Em 1949, mãe e filho se mudam para Roma, em função de um escândalo em torno da homossexualidade de Pasolini – embora haja evidencias de que as motivações de seus detratores eram políticas. Sem uma presença masculina forte na família, seu pai havia morrido, os conceitos de beleza, bondade, e autenticidade reduziam-se a Susanna. Fora algumas primas e tias, Pasolini conheceu algumas mulheres na época da universidade, quando colaborou com algumas que muito influenciaram suas posições futuras sobre fascismo, sexualidade, poética, morte, realidade, amor.

Susanna na Poesia de Pasolini

As personagens femininas de Pasolini não refletem as figuras femininas intelectualmente fortes de sua vida, mas a simples bondade de Susanna e a vitalidade terrena de Casarsa e seu povo. A poesia de Pasolini não só marca o início de sua trajetória artística como introduz e desenvolve temas que reaparecerão em seus romances e filmes. Seja qual for a época, sua visão poética gira em torno de Susanna e o ambiente rural de Casarsa. (imagem ao lado e abaixo à direita, Susanna em Teorema)

Em sua primeira coleção de poesias, Poesia a Casarsa (1942), algumas figuras femininas aparecem e poderiam ser entendidas como um “muitos” comunal ou um “ser” universal. Figuras simbólicas, “arquétipos rústicos” da mulher ou da garota. São figuras joviais imersas no ambiente semi-idílico que Casarsa representa para Pasolini e que ele considera autênticas – o conceito de vida autêntica acompanhará o poeta em toda a sua futura crítica da perda da autenticidade da vida social italiana. Essas mulheres podem estar grávidas (vitalidade) e ao mesmo tempo remeterem à morte (como em Il Fanciullo Morto) (O Garoto Morto), podem ser pessoas inocentes e simples e representar o arquétipo da vida e seu complemento (a morte) (Madre Fanciulla) (Mãe Jovem) (4), ou a mulher pode ainda aparecer sempre casta em comportamento e modesta aparência (personificando o mistério da vida que permite ao homem renascer) (La Megglio Gioventù, A Melhor Juventude, publicado em 1954).

O poema Suíte Furlana (1944-9) descreve a relação entre a vida e a morte através de uma mulher. Para Pasolini, conceito de Mãe Jovem (Madre Fanciulla) é essencial. A simplicidade e integridade desta mulher é uma verdade que ele precisa preservar a todo custo. “É como se a sobrevivência da jovem mãe pudesse garantir a própria proteção do poeta num mundo que está se tornando imune aos seus sentimentos” (5). A Mãe Jovem poderia ser uma mulher universal, Maria (como em L’annunciazione, de 1943). As noções de vida e vitalidade continuaram a se centralizar na figura materna. Entretanto, a Mãe jovem adquire novos traços de significância política a partir das novas coleções de poemas, L’usignolo della Chiesa Cattolica (O Rouxinol da Igreja Católica, 1958) e La Religione del Mio Tempo (1961).

Em A un Figlio non Nato (A um Filho não Nascido, 1958), Pasolini se refere a uma prostituta “inocente” chamada Franca. Mulheres como ela, as prostitutas em geral e seus cafetões, intrigaram Pasolini desde sua chegada a periferia de Roma. Em sua opinião, esses dois personagens do subproletariado romano irradiam pureza. Precisamente porque eles são excluídos da sociedade, Pasolini acredita que os gestos de putas e cafetões, sua interação e existência de sobreviventes, são tão inocentes quanto aqueles dos fazendeiros do Friuli que o poeta conheceu na infância e adolescência. Em meados da década de 50, Pasolini escrevia e colaborava em roteiros que retratavam Roma e prostitutas, como em Noites de Cabiria (Le Notti di Cabiria, direção Federico Fellini, 1957), A Garota na Vitrine (La Ragazza in Vetrina, direção Luciano Emmer, 1961) e A Morte (La Commare Secca, direção Bernardo Bertolucci, 1962) (6).

Como nos poemas anteriores, Pasolini se refere aos elementos da natureza (sol, rio, maternidade) para marcar a vitalidade genuína de Franca (7). A ponte onde Franca espera por seus clientes foi fruto da colaboração entre fascistas e democrata-cristãos – partido político que dominou o pós-guerra na Itália, com implicações evidentes para o pensamento político antifascista de Pasolini. A ponte representa a “autoridade” e a falsa grandeza, comparada à existência humilde e genuína de Franca. A ponte também é um símbolo do futuro, e Franca do passado. A partir dessa oposição, Pasolini pode dizer à criança não nascida que ele não lamenta que ela não tenha chegado a existir.

Aqui, a reflexão poética sobre o nascimento junta-se à vida e a morte numa única imagem. A memória de Franca (o passado) é positiva, lembra dias de trabalho gratificante e consciência social. Tudo em contraste com “este mundo”, o opressivo presente que a criança não verá. *

Notas:

* As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (V) encontra-se no arquivo de setembro de 2008.

1. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Toronto: University of Toronto Press, 2007. P. 15.
2. Idem, p. 232n9.
3. Ibidem, p.233n16.
4. Em italiano, fanciullo significa “garoto entre os seis e doze anos”. Mas o feminino, fanciulla, pode indicar também uma garota de vinte anos. Baseado nisso, traduzi Madre Fanciulla por “Mãe Jovem”.
5. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 25.
6. Idem, p. 235n43.
7. Ibidem, p. 28.

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