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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

7 de mai. de 2009

Accattone: Favelado, Cafetão e Cristo




Accattone
,
em italiano
,
quer dizer
“mendigo”






A Favela Italiana na Telona

De acordo com Pino Bertelli, o cinema de Pier Paolo Pasolini é um veneno para o coração de todos que possuem um imaginário domesticado. Já em Accattone, Desajuste Social (Accattone, 1961), Pasolini cria um obra ímpar, que mostra a vida na favela da periferia de Roma em detalhe. Na opinião de Bertelli, o primeiro filme de Pasolini constituiu a maior estréia individual do cinema italiano (1). Accattone, um cafetão da favela de Torpignattara em Pigneto durante a década de 60 do século passado (2). De fato, Franco Citti, que interpreta o papel, era um morador da favela e foi ao freqüentá-la que Pasolini o conheceu. Accattone é também uma espécie de Cristo pasoliniano.




“O  chamavam  de
 Accattone porque ele
mendigava a vida”

Pino Bertelli





Anjos serão uma constante na cinematografia pasoliniana. Uma série de seqüências do filme remetem a vida/morte. Logo no começo, para provar que não tem medo da morte (e também para arrumar algum dinheiro apostando que não morreria), Accattone salta de uma ponte no rio Tibre que atravessa Roma. Nesta cena podemos ver as estátuas de anjos da ponte como que protegendo aquele homem (imagens acima). No final do filme, quando Accattone rouba uma motocicleta, bate e morre, Ballila, um de seus amigos, faz o sinal da cruz invertido. Embora Bertelli chame atenção para esse detalhe, de acordo com Pasolini, o que importa é perceber um significado de esperança no sinal da cruz. O cineasta achou que poucos veriam a cena nesse prisma, mas foi isso que quis dizer (3).



O filme 
mostra a degradação 
da vida na periferia
de Roma





Mas antes disso o filme mergulharia numa seqüência digna de Luis Buñuel (as duas próximas imagens). Na noite que antecede o dia em que Accattone resolveu arrumar um emprego honesto, ele tem um sonho/pesadelo. Ele caminha no parapeito de uma ponte, quando desce para o asfalto vê ao longe o grupo dos napolitanos amigos de Ciccio (um cafetão que Accattone conseguiu mandar para a cadeia e colocar a culpa em Maddalena, a prostituta que trabalha para os dois). Ao se aproximar, eles agora estão nus e mortos. Em seguida, Accattone percebe ao longe um cortejo fúnebre (o mesmo que havia visto de verdade um outro dia) e encontra seu grupo de amigos. Para sua surpresa, estão indo ao enterro dele! Accattone os acompanha, mas é impedido por um funcionário de entrar no cemitério. Ele pula o muro e avista um coveiro cavando uma sepultura para ele na sombra. Accattone pede que cave um buraco onde bate o sol.



O    filme     mostra
também  a  santidade
da inocência que essa

degradação contém





A Censura (Mas Não ao Consumismo) 


A cultura
de Accattone
(ou  a  falta  dela)

legitima  a  visão
de     mundo
burguesa



O filme exorta, defende Bertelli, a uma análise sobre a dominação do imaginário pelo consumismo e pela mitologia do consenso e dos desejos coletivos. A linguagem do consumo substitui o imaginário, “o mercado torna-se a única estética à qual conformar-se”. O percurso pasoliniano, sugere ainda Bertelli, tende a redescobrir a subjetividade criativa do indivíduo, disseminando novas estéticas do sonho e outras figurações da realidade. Neste sentido é que se pode afirmar que Pasolini está entre aqueles (como Jean-Luc Godard em Acossado, para a seqüência surreal em que Accattone acompanha o próprio funeral; e Orson Welles) que subverteram a gramática cinematográfica (4). Bertelli não para por aí, em vários trechos de Accattone, Desajuste Social, ele afirma encontrar pitadas de Carl Dreyer (A Paixão de Joana D’arc, 1928; O Vampiro, 1932), Mizoguchi (Mesmo Assim Continuamos a Viver (5), 1931), Phil Jutzi (A Viagem de Mãe Krause Para a Felicidade, 1929), Sergei Eisenstein (O Encouraçado Potemkin, 1926), Vsevolod Pudovkin (A Mãe, 1926) e Aleksandr Dovzenko (A Terra, 1930). Sem falar numa releitura do Neo-Realismo (6).





Pasolini sempre
criticou o racismo
da burguesia




Bertelli questiona os críticos da época. Reprova Paolo Gobetti por sugerir que Accattone, Desajuste Social tem uma linguagem cinematográfica imatura. Acusa de moralista a afirmação de Guido Aristarco de que o filme foi uma forma de Pasolini expor um sentimento de culpa em relação a sua homossexualidade. Na opinião de Bertelli, o que escandaliza os moralistas é a homossexualidade declarada de Pasolini (7). E a sociedade italiana era (?) provinciana e preconceituosa, não conseguia aceitar as críticas de Pasolini à forma como a economia e a política da Itália estavam sendo geridas no pós-guerra. Como se a homossexualidade impedisse o espírito crítico.

Pasolini
era contrário
à doutrinação
das     classes
pobres pelos
comunistas



O universo subproletário de Roma torna-se uma metáfora do mundo na obra literária e cinematográfica de Pasolini. Em 1955, baseado em sua experiência nas favelas de Roma, Pasolini havia publicado Ragazzi di Vita. Alguns poderiam dizer que se trata apenas da história indigesta e imoral de rapazes pobres que vivem de roubo e prostituição. Mas o contexto do livro está ancorado nos primeiros dias do pós-guerra em Roma, e mostra desde as esperanças traídas da Resistência (os grupos de civis que lutaram contra o invasor alemão) até a restauração do que Pasolini considerava o “novo fascismo” dos anos 50 do século passado. O governo classificou como “leitura obscena” e censurou o livro, os católicos chamavam de blasfêmia e os comunistas estavam desconcertados com um livro que mostrava a animalidade da vida nas favelas da cidade (8).

Contextualizando

Bertelli nos lembra do contexto ao qual Accattone, Desajuste Social remete ou, pelo menos, do qual Pasolini era contemporâneo, já que o filme foi lançado em 1961. O filme mostra a continuidade entre o regime fascista de Mussolini e o Democrata-Cristão/Comunista da década de 60 (9). A vida curta de Accattone espelha o povo italiano humilhado pelo então governo de Giovanni Tambroni. Em 30 de junho de 1960, no episódio conhecido como A Revolta de Genova, ocorre um confronto entre as forças neofascistas e o povo nas ruas. Pela primeira vez desde o fim da guerra, haviam entrado para o governo os fascistas do Movimento Social.


Em 30 de junho, os fascistas da Força Nova convocaram uma manifestação em Genova. Os portuários convocaram uma greve e uma manifestação para se opor aos fascistas. A postura antifascista era muito popular, embora difusa, entre os proletários de então.

Após a reconstrução do pós-guerra, os anos do Milagre Econômico não foram acompanhados por um aumento na representatividade política das diferentes forças sociais. O Partido Comunista Italiano (PCI) controlava a classe operária e procurava fazer frente ao Partido Democrata-Cristão DC), então no poder. Uma multidão de 100 mil pessoas (proletários e trabalhadores) percorre a cidade. Fazem um comício na Piazza della Vittoria e se dirigem a Piazza De Ferrari. Lá entram em confronto com a polícia. O governo Tambroni cai e se abre caminho ao futuro governo de centro-esquerda (10). (imagem abaixo, Accattone conhece Stella e diz o que faria para melhorar a Itália)


Com esta contextualização compreende-se melhor a frase de Accattone quando conheceu Stella. Ele havia ido procurar sua esposa para tentar arrumar algum dinheiro com ela. O lugar era uma espécie de depósito gigante de garrafas vazias, onde algumas pessoas ganhavam trocados separando-as e lavando-as. Enquanto espera, Accattone conhece Stella, uma moça muito pobre e muito ingênua (mas que já sabe o que é a prostituição, pois sua mãe havia feito isso para viver). Em certo momento, Accattone faz um comentário:

“Eu sei o que é preciso
para acertar a Itália
. Veja só, Lincoln  libertou  os  escravos!
E aqui [instituíram a escravidão]! Com   uma   metralhadora   na
minha    mão
   sobrariam
poucos    de    pé”
(11)

Notas:

1. BERTELLI, Pino. Pier Paolo Pasolini. Il Cinema in Corpo. Atti Impuri di un Eretico. Roma: Edizioni Libreria Croce, 2001. Pp. 24 e 28.
2. CECCARELLI, Filippo. Le borgate perdute di Pasolini In
Pier Paolo Pasolini. Pagine Corsare, 2005. Disponível em: http://www.cinetecadibologna.it/sitopasolini/notizie_borgateperdutedippp.htm Acessado em: 06/05/09.
3. BERTELLI, Pino. Op. Cit., pp. 29-30.
4. Idem, p. 33.
5. Título não lançado no Brasil até o momento, esta é uma tradução baseada no título italiano citado no livro de Bertelli.
6. BERTELLI, Pino. Op. Cit., p. 37-8.
7. Idem, p. 31.
8. Ibidem, p. 44.
9. Ibidem, p. 49.
10. 30 giugno 1960 La rivolta di Genova. In Umanità Nova. Settimanale Anarchico n.24 del 1 luglio 2001 Disponível em:
http://www.ecn.org/uenne/archivio/archivio2001/un24/art1711.html Acessado em: 07/05/09.
11. Nas legendas do dvd lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo, o trecho utiliza palavras um pouco diferentes do texto no roteiro original, embora sem grande prejuízo. O próprio roteiro é seguido apenas em parte. Mesmo assim, optei por fazer uma mistura entre os dois por considerar o texto do roteiro mais contundente. Accattone: “Eh, lo saprebbe io che ce vò in Itália! Sì che s’ha da vede! Eppure Lincoln l’há libberati li schiavi! Invece qua se manca proprio che ce mettono la palla ar piede! Ah, co’um mitra in mano a me, rimanessimo pochi in piedi!” SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds) Pier Paolo Pasolini per il Cinema. Milano: Mondadori, 2 vols. 2001. Vol 1, p. 50. 


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