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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

23 de jun. de 2011

Catolicismo e Neo-Realismo na Itália





Aos   norte-americanos,
o   entretenimento   escapista
permitiria o retorno do investimento. Já para o Vaticano, aquela cultura do consumo não se torna problema caso
a imagem associada a ela pudesse promover valores cristãos
através do cinema
(1)




No Começo Era o Tio Sam

Com o final da Segunda Guerra Mundial, as companhias norte-americanas que haviam sido banidas (em alguns casos desde a década de 30) da Europa nazifascista retornam e procuram ocupar o vácuo deixado pelo fim da indústria de cinema dos perdedores. Na Itália, em particular, o mercado parecia promissor, pois já na década de 50 o país contava com mais salas de cinema do que outros grandes mercados – 11, 641 cinemas, comparado a 5, 806 na França e 6, 885 na Alemanha (2). Mas a indústria cinematográfica italiana não estava tão bem, a Cinecittà agora estava sendo usada como campo de refugiados. Além disso, não havia interesse por parte dos Estados Unidos em reativar a indústria local. A reintrodução continuada de filmes norte-americanos (e suas práticas restritivas que funcionavam como coleiras para os distribuidores italianos) seria responsável por uma sistemática e recorrente oscilação negativa na produção italiana do pós-guerra. Resumindo, no final da guerra não havia mercado de exportação preparado para receber filmes italianos, e o mercado doméstico estava dominado pela “política de despejo” da Motion Picture Export Association of America. (imagem acima, A Terrra Treme, direção Luchino Visconti, La Terra Trema. Episodio del Mare, 1948; abaixo, cena final de Roma, Cidade Aberta, com a cúpula da catedral de São Pedro ao fundo)




Alguns consideraram a fundação da Associação de Exibidores Católicos em 1949
como  tentativa de  sabotar
o   cinema   italiano
(3)




A resposta dos cineastas italianos significou afiar uma faca de dois gumes: eles exploraram os gêneros mais populares. Musicais, comédias, aventuras, dramas e filmes históricos foram os gêneros que conseguiram competir melhor com as produções de Hollywood. Daniela Treveri Gennari acredita que desta forma a ideologia inerente aos filmes norte-americanos foi transferida para alguns pontos chave do cinema italiano. Em Cinema e Pubblico (1985), Vittorio Spinazzola descreve a indústria cinematográfica italiana entre 1945 e 1965, dividindo a produção em filmes sobre o povo (leia-se Neo-Realismo) e para o povo. Neste segundo caso, foram incluídos musicais, adaptações literárias, costumes, comédias e “Neo-Realismo popular”. Entre 1948 e 1952, o cinema popular italiano se caracterizou pelo chamado Neo-Realismo rosa, com filmes como Pão, Amor e Fantasia (Pane, Amore e Fantasia, 1953), Pão, Amor e Ciúme (Pane, Amore e Gelosia, ambos com direção de Luigi Comencini, 1954), Pão, Amor e... (Pane, Amore e... direção Dino Risi, 1955) e Poveri Ma Belli (direção Pietro Germi, 1956). Spinazzola explicou que o Neo-Realismo rosa representou o triunfo de um tipo particular de estilo de filme com final feliz: alegre, mas levemente comovente. Era Hollywood combinada com a tradição nacional italiana que poderia ser traçada até o teatro de Carlo Goldoni (1707-1793). Em 1954 a televisão chegou à Itália, mas essa é outra história!

Neo-Realismo Descendo a Ladeira 
 
Às vezes o Vaticano
até reclamava dos filmes
norte-americanos
. Mas ele
os tolerava em seus cinemas paroquiais
, pois ofereciam
“soluções calmantes” não
 
encontradas nos filmes
neo-realistas
(4)


O Vaticano tinha uma série de restrições aos filmes norte-americanos do ponto de vista moral, mas a política prevaleceu e as arestas foram aparadas, até porque os católicos tinham muito mais restrições em relação ao Neo-Realismo “não popular” – aquele que não era rosa. Em 1950, La Rivista del Cinematografo, publicação oficial do Centro Cattolico Cinematografico, veiculou um artigo onde sugeria que fosse introduzido na Itália o modelo norte-americano. Por pressão das organizações católicas daquele país, um selo era colocado nos filmes “aprovados”. O Estado e a Igreja italianos estavam juntos nessa aspiração, mas sabiam que ela deveria ser “temperada” para respeitar o “escapismo”. Em 1947, na mesma Rivista, Michele Lalli afirmou que o cinema deve elevar a mente, mas também se manter escapista, coisa que o neo-realismo italiano e francês não conseguira fazer – mas que era o slogan da indústria de Hollywood (5). (imagem acima, Roma, Cidade Aberta; abaixo, à direita, Paisà, direção Roberto Rossellini, 1946)


Curiosamente, a
mensagem de justiça
e
esperança  pregada pela Igreja Católica estava bem
presente  nos 
filmes
de Hollywood
(6)


A partir de 1947, o governo italiano impôs rígido controle sobre a produção, o financiamento e a censura de filmes. A produção de filmes vinha crescendo entre 1945 e 1955, mas a qualidade descia a ladeira. Mas o importante, segundo Gennari, é que o governo italiano criou uma alternativa em relação ao Neo-Realismo – que na época ele considerava muito perigoso. Entre 1950 e 1951, os filmes sobre o povo haviam sumido das listas dos 10 mais. A noção de “qualidade” deixava de possuir uma conotação artística, para ser definida em termos de valores de produção, estrelas internacionais, locações exóticas e espetáculo. Como resultado, o Neo-Realismo foi afastado dos holofotes e substituído por diferentes variações de cinema popular. Variações que possuíam um forte vínculo com a tradição católica. Nas palavras de Spinazzola, intimamente católico e balizado nas noções de pecado e na inescapável fragilidade humana, esse cinema popular italiano procurou explicitar um “valor edificante”, que diferia da moral mais complexa dos neo-realistas (7).(imagens abaixo, à esquerda, A Terra Treme; à direita, História de Caterina, episódio de O Amor na Cidade, direção Francesco Maselli e Cesare Zavattini, 1953)

Um Cinema Otimista? 


Em 1960, um
jesuíta  rezou  uma
missa para tentar expiar
os   pecados   cometidos
pelos que assistiram
A Doce Vida
(8)


Entretanto, não era raro acontecer dos cinemas de paróquia e seus freqüentadores não prestarem muita atenção nas diretivas do Vaticano e do governo. A luta contra o comunismo também era parte desse pacote da censura, que classificava os filmes e autorizava ou proibia sua veiculação. Em 1951, a maior porcentagem de filmes “adequados para todos” eram norte-americanos (23%) e a menor de italianos (8%) – evidentemente, produções neo-realistas estavam fora dessa pequena lista de sobreviventes. A importância da intervenção católica na indústria cinematográfica italiana do pós-guerra pode ser medida pela fundação da Associação Católica dos Críticos de Cinema. E o Vaticano afirmou explicitamente a importância dessa crítica em Miranda Prorsus (1957), onde o Papa Pio XII se referiu à questão da moralidade nos filmes. Essa crítica católica deveria distinguir os valores artísticos dos éticos e alertar sobre os perigos potenciais presentes no cinema. Esses perigos eram freqüentemente associados ao Neo-Realismo italiano. Definindo propostas, em 1951 F. Ammannati publicou um artigo na Rivista onde dizia que a função do cinema “é encorajar e não deprimir”. Otimismo e positividade eram os elementos chave que a imprensa católica elegeu para proteger os valores da família ameaçados. Na opinião de Gennari, as atitudes da Igreja Católica e do Estado italiano em relação ao Neo-Realismo são um campo meticulosamente estudado (9).




Rocco e Seus
Irmãos
foi descrito como

o ponto final da perversão
ética e estética
(10)





Durante 1947 e o início de 1948, os ataques católicos contra o Neo-Realismo foram muito intensos. Mas após a vitória dos Democrata-Cristãos em 1948, a atitude da Igreja mudou. De qualquer forma, na opinião de Gennari, não foi essa animosidade a responsável para a queda do Neo-Realismo. Roma, Cidade Aberta (Roma Città Aperta, direção Roberto Rossellini, 1945), foi considerado positivo pelo louvor ao sacrifício heróico e qualidade técnica. Mas não foi classificado na categoria “para todos” por conta da “representação realista excessiva de algumas cenas”. Outro filme realizado por Rossellini, Europa 51 (1952), que poderia ser classificado como uma tentativa de “psicologizar” o Neo-Realismo, foi classificado como “para adultos, com mudanças apropriadas”. Elogiado pela acusação contra a sociedade moderna, incapaz de resolver seus problemas sociais pela aplicação de princípios evangélicos, o filme foi acusado de apresentar princípios cristãos de forma discutível – sendo aconselhável apenas para adultos com “maturidade moral completa”. Intelectuais e escritores católicos passaram a reavaliar o Neo-Realismo, procurando um eventual conteúdo cristão. Mas ainda persiste uma dicotomia entre aqueles que os encontram e aqueles para quem esse cinema falava de um país abandonado por Deus. O cineasta Carlo Lizzani disse que os católicos italianos não compreendem os aspectos cristãos do Neo-Realismo e o rotulam como comunista.


Notas:

Leia também:

A Religião no Cinema de Carl Dreyer
Rossellini e Sua Europa (I), (II), (final)
Religião e Cinema na Itália
A Cultura da Arma na América do Norte (I), (II), (III), (IV), (V), (final)
Religião e Cinema na França
O Mercado de Consumo e o Corpo no Discurso da Mídia
A Bruxa Italiana de Żuławski
Buñuel, o Blasfemador (I), (II), (final)
Rossellini e o Herói Paisano
O Rosto e a Ética na Televisão
Café(tão) Brasil: Os Bordéis da Rede Globo com a Mão na Massa

1. GENNARI, Daniela Treveri. Post-War Italian Cinema. American Intervention, Vatican Interests. New York/London: Routledge, 2009. P. 145.
2. Idem, p. 7-8.
3. Ibidem, p. 85.
4. Ibidem, p. 145.
5. Ibidem, p. 30.
6. Ibidem, p. 85.
7. Ibidem, p. 56.
8. Ibidem, p. 85. La Dolce Vita, direção Federico Fellini, 1960.
9. Ibidem, pp. 75, 84-5, 112-3.
10. Ibidem, Rocco e i Suoi Fratelli, direção Luchino Visconti, 1960. 


Sugestão de Leitura

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