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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

7 de jun. de 2009

Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (III)


Em Salò, tudo
é permitido
.
Menos relações
ditas normais
,
punidas com
a morte



O Am
or é a Maior Subversão

Os 120 Dias de Sodoma, livro escrito por Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade em 1785, por si só constitui uma história a parte. O manuscrito se perdeu durante a Revolução Francesa – De Sade estava preso na Bastilha quando escreveu o texto. De alguma forma ele chegou ao século 20 e foi publica em 1935. Existem quatro narradoras, cada uma contando histórias para entreter quatro poderosos/libertinos e seus prisioneiros. A cada dia são contadas cinco “aventuras”, durante 120 dias o total chega a 600 estórias que vão esfolar os valores e costumes. São 30 as estórias mais importantes, o restante servindo de prólogo ou artifício retórico narrativo. Pasolini toma de De Sade seu jeito, mas o atravessa, modifica, o despe de muita coisa. Os acentos de perversão sadiana são articulados à idéia de que em uma sociedade fechada (como a fascista), as vítimas são tão culpadas quanto seus assassinos.

Na verdade,
a falsa tolerância do
fascismo atual impõe a
nós uma série de hábitos,
fazendo-nos crer que
são fruto de nosso
livre arbítrio


Pino Bertelli nos lembra que o último filme de Pasolini, Salò, os 120 Dias de Sodoma (Salò o le 120 Giornate di Sodoma, 1975), não é bonito, mas duro, impiedoso e claustrofóbico. Dominado por uma luz fria e artificial, não há sedução visual. Nas filmagens externas, as cores são ralas e esfumadas na névoa. Entretanto, contém uma esperança, pois se é verdade que na Trilogia da Vida (especialmente em As Mil e Uma Noites) (1) a alegria de Eros era propriamente o amor, não é verdade que em Salò Eros é apenas ódio. “O desespero pasoliniano de Pasolini em Salò... não significa a derrota de uma geração, mas a certeza que o novo fascismo estava agora nos corpos, nas dobras mais ocultas da vida cotidiana, e a única insubordinação incontrolável era o amor. Qualquer tipo de amor” (2).

A Narrativa

A falsa tolerância
do novo fascismo
escraviza os corpos
,
o ato sexual sem amor
é forçado e fruto de
violência gratuita


O filme é estruturado em quatro partes, um Prólogo (Anteinferno) e três Círculos, onde três velhas putas, acompanhadas por uma quarta meretriz ao piano, narram suas histórias. Existem também quatro poderosos, que representam os poderes centrais: o Monsenhor (o poder eclesiástico), o Duque (o poder dos nobres), o Presidente da Corte (o poder judiciário) e o Presidente Durcet (o poder econômico). Após terem recolhido rapazes e moças, um grupo de soldados Republicanos (acompanhados de soldados da SS nazista) se trancam numa villa na cidade de Salò. Pasolini transpõe o livro do século XVIII para o no norte da Itália em 1944, durante a ocupação nazi-fascista.

Segundo Pasolini,
certa
juventude imbecil
e pretensiosa não vê que
um Estado centralizador
sempre programa
os seus gostos


Os prisioneiros ficarão por 120 dias, sendo submetidos às regras e códigos escritos pelos quatro Patrões, quaisquer delitos serão punidos com a morte. Os jovens são divididos em quatro grupos: vítimas sacrificiais, soldados obedientes, colaboradores infiéis e servidão apavorada. Os dias correm, as narradoras contam suas perversões sexuais na Sala das Orgias para excitar os Patrões, que dispõem dos corpos dos prisioneiros como desejam. No Prólogo (Anteinferno) um pacto de aliança é celebrado entre os quatro Patrões, onde cada um deverá casar-se com a filha do outro.

No Fascismo, ou no
neocapitalismo atual
(novo fascismo), a
característica do Poder
é a capacidade de
coisificar os corpos

O Círculo das Manias abre o filme, completamente nus, os rapazes e moças sofrem várias sevícias enquanto uma das meretrizes conta as histórias de sua vida sexual. Em seguida são obrigados se por de quatro e comer pedaços de alimento cheios de agulhas. Na seqüência, passamos ao Círculo da Merda. Enquanto outra meretriz assume o posto de narradora de histórias sexuais, os prisioneiros são “convidados” a comer as próprias fezes num banquete – numa espécie de perversão sádica da Santa Ceia (3) (imagens acima à direita e abaixo). O Círculo do Sangue, com as histórias de outra narradora, nos apresenta mais sevícias e torturas. Um dos rapazes é descoberto fazendo amor com uma das garotas, é fuzilado. Próximo ao fim, os Patrões concluem com uma orgia sacrificial, os prisioneiros mutilam uns aos outros enquanto os poderosos acompanham de binóculo através de uma janela. Em outro lugar, dois prisioneiros com a função de soldados obedientes estão ouvindo rádio. Depois de encontrar uma canção popular dos anos 40, começam a dançar. Um deles pergunta sobre a namorada do outro e elogia o nome dela. Uma cena que começa com uma insinuação sexual, termina com um elogio ao sentimento do amor. “Porque o pensamento do amor vence tudo. Porque para o amor (como para a liberdade) não existem correntes” (4).

Corpos Dóceis (e Escravizados)

Numa época
onde a fome convive
com a alta tecnologia e
a permissividade sexual
torna-se repressiva (já que
é imposta), as perversões
em Salò parecem até
bastante banais

Como em Teorema (1968) ou Pocilga (Porcile, 1969), Salò, os 120 Dias de Sodoma é uma grande metáfora sobre sexo e poder. É um filme extremo, a felicidade que se podia encontrar na Trilogia da Vida é só uma lembrança aqui. O alvo é um universo da comercialização que tira de nós a posse de nossos corpos. Desapropriando-os através do hedonismo e de uma falsa tolerância sexual. Tudo isso aponta para aquilo que Marx denunciou como sendo a comercialização do próprio homem: redução do corpo à coisa através de sua exploração. Quando o corpo é reduzido à coisa pelo consumismo, as obrigações sociais tornam-se apenas uma pedagogia de assimilação. Nesse contexto, aquilo que poderia significar uma afronta ao Poder (que encontramos no filme nas cenas de masturbação, travestismo, voyerismo, sodomia, coprofagia e violência) torna-se uma afirmação da própria impotência através de excessos que no fundo significam um consentimento dos dominados para serem esmagados por ele. Nesse mundo de banalidade do Mal, os demônios não são os fanáticos com mãos ensangüentadas nem os políticos estúpidos, mas os burocratas do Poder – que nenhum tribunal poderá julgar com verdadeira justiça. Salò é o fim de uma Idade da Inocência.

Para Pasolini, a “nova juventude” que surgia no pós-guerra italiano empreendeu uma viagem sem retorno ao País Inexistente da felicidade mercadológica, e era muito evidente para o cineasta que a primeira coisa que será consumida, reciclada, violada, serão seus próprios corpos jovens. Não se pode confundir essa época de crueldade com o livre arbítrio, que nada tem a ver com uma tolerância simulada e cínica. Quando o Poder se instala, afirma Pasolini, a barbárie é aceita como um fato, sua execução não conhecendo nenhuma ideologia justa. Sempre foi em nome de Deus, do Povo ou do Estado, que a humanidade conheceu as mais atrozes violências perpetradas contra si mesma (5).

Notas:

1. Os filmes da chamada Trilogia da Vida antecederam Salò. São eles O Decameron (Il Decameron, 1971) Os Contos de Canterbury (I Racconti di Canterbury, 1972), e As Mil e Uma Noites (Il Fiore delle Mille Una Notte, 1974).
2. BERTELLI, Pino. Pier Paolo Pasolini. Il Cinema in Corpo. Atti Impuri di un Eretico. Roma: Edizioni Libreria Croce, 2001. P. 310.
3. NAZÁRIO, Luiz. Todos os Corpos de Pasolini. São Paulo: Perspectiva, 2007. P. 110.
4. Idem, p. 311.
5. Ibidem, p. 312.

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