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Roberto Acioli de Oliveira

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16 de jan. de 2009

As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (VIII)

Susanna (final)

A maior atração de cada um
de nós é para o Passado,  porque
é  a  única  coisa  que  conhecemos
e  amamos  de  verdade. Tanto que
o confundimos com a vida. Nossa
meta é o ventre de nossa mãe”

Pier Paolo Pasolini
Pilade, Teatro, 314

Susanna e Marilyn Monroe 

Com A Raiva (La Rabbia, 1963) e Comícios de Amor (este com a participação de Susanna no elenco), Pasolini começa a procurar as mulheres do tempo presente (sua mãe representa o passado): Marilyn Monroe no primeiro filme e, no segundo, mulheres anônimas e algumas amigas intelectuais do poeta/cineasta. Esses filmes mostram as mulheres como sujeitos históricos e um discurso feminino a respeito da autenticidade cultural. Os dois mostram como o Milagre Econômico do pós-guerra na Itália não foi capaz de instaurar mudanças positivas para todos os grupos em todos os níveis da sociedade. (imagem acima, à direita, Suzanna em Teorema; à esquerda, abaixo à direita e no centro, Marilyn Monroe em A Raiva)

Pasolini mostrou a mulher a partir da diferença dela, mas não deixou de articular questões como orientação sexual, diversidade social e opressão cultural. Em A Raiva, ele utilizou Marilyn Monroe para falar da exploração de Hollywood. Em Comícios de Amor, Pasolini experimenta assuntos como casamento, divórcio, trabalho e prostituição, tanto do ponto de vista feminino quanto masculino.

De acordo com Collen Ryan-Scheutz, embora os dois filmes abordem questões de gênero, a feminilidade nunca foi um elemento decisivo no trabalho de Pasolini. Não se pode dizer que apoiava a o Movimento Feminista. Na década de 70, as jornalistas queriam saber a respeito de como ele via a mulher, especialmente nos filmes da Trilogia da Vida (1) – Decameron (Il Decameron, 1971) Os Contos de Canterbury (I Racconti di Canterbury, 1972) e As Mil e Uma Noites (Il Fiore delle Mille e Una Notte, 1974). Apesar de sua amizade com feministas como Adele Cambria, Oriana Fallaci e Dacia Maraini, as personagens femininas que Pasolini mostrava na tela não eram influenciadas por elas.

“Pasolini convidou várias dessas mulheres a colaborar em seus filmes ou aceitou entrevistas com elas em várias oportunidades. Cambria representou o papel de Nanninna em Accattone [1961], e ela mesma em Comícios de Amor. Dacia Maraini auxiliou na criação do roteiro e seleção de locações para As Mil e Uma Noites” (2)

Pasolini tratava as mulheres “reais” nesses filmes de mesma forma que as ficcionais: como mediadores para compreender se ainda existiam elementos das antigas subculturas italianas. O retrato que Pasolini mostrava da mulher era apenas mais um componente de um retrato social maior de opressão e profanação. Portanto, o interesse de Pasolini não era propriamente pela mulher “real” ou por suas questões, mas no que ele poderia concluir a respeito da Itália e a sociedade Ocidental a partir dela (3).

Marilyn Monroe incorporou simultaneamente o anjo e a puta, dois arquétipos da representação do feminino na obra de Pasolini: a garota pobre de cidade pequena e o símbolo sexual número um da América do Norte. Sua história de vida reflete a dicotomia pasoliniana entre modos de vida autênticos e inautênticos, a Mãe Jovem (Madre Fanciulla) e a diva de Hollywood. As curvas de seu corpo tipificam tanto vitalidade sexual e promiscuidade quanto fertilidade e esplendor maternal. As imagens de Marilyn em A Raiva referem-se à perda da inocência para a “máquina” cultural corrupta e sedutora. De forma similar aos amados fazendeiros do Friuli da infância de Pasolini, ou das prostitutas de rua de Roma, Marilyn foi explorada pelo sistema, por isso o poeta/cineasta podia se identificar com ela.

Ainda que Marilyn não represente o subproletário do pós-guerra presente nos filmes anteriores de Pasolini, ou a mãe mítica dos posteriores, sua realidade de moça pobre que se torna objeto da máquina de Hollywood exemplifica a habilidade do Sistema em transformar a identidade e os ideais humanos. Um Sistema que engole indivíduos e nações inocentes. A morte de Marilyn, conclui A Raiva, mostrou-nos o caminho: rejeição radical dos mecanismos de cooptação daquilo que é potencialmente puro (o corpo e os desejos humanos).

Vivendo no Passado

Enquanto A Raiva parte de Marilyn para falar da mulher “real” no mundo inteiro, Comícios de Amor fala da mulher italiana (imagem ao lado e seguintes). Comícios foi um dos poucos filmes daquela época que solicitou e ponderou a respeito do ponto de vista da mulher. Por retratá-la como uma cidadã importante e pensante, cujas aspirações e pontos de vista merecem atenção, este filme é crucial para o estudo da mulher no cinema de Pasolini. Aqui elas não aparecem em função apenas de maridos, cafetões ou filhos, mas também do trabalho, dos direitos e dos desejos. Neste filme, Pasolini soma, ao valor visual do corpo da mulher, a realidade histórica dela na Itália da década de 60 do século 20.

O filme mostra como a maioria das mulheres italianas ainda era vítima de um sistema patriarcal de valores. Mas Pasolini acreditava enxergar, em algumas palavras e gestos que elas escolhiam para responder as perguntas dele, uma demonstração de que mantinham uma natureza não corrompida no interior de um sistema relativamente opressivo. Neste sentido, a mulher “real” de Comícios de Amor possuiria a característica da Mãe Jovem. Por outro lado, conforme Maurizio Viano, Pasolini atirou no que viu e acertou o que não viu.

“O documentário de Pasolini obviamente falha em sua tentativa de fornecer um documento da ‘Itália verdadeira’. É bem sucedido, entretanto, em documentar a máscara. O valor de Comizi D’amore está na representação documental de homens e mulheres, jovens e velhos, usando máscaras”(...)”Os obsessivos closes de rosto tem como objetivo arrancar fora ‘pelo menos uma verdade psicológica’ e permitir ao espectador perceber a fisionomia da mentira. De fato, mentir não é outra coisa senão a obediência a códigos de auto-representação, os códigos da máscara” (4)

As mulheres “reais” de Pasolini possuíam um caráter duplo de entidades poéticas e políticas. Ainda que lembrando a Mãe Jovem de Casarsa e a inocência que Pasolini associava a essas origens, tanto Marilyn em A Raiva, quanto as mulheres de Comícios de Amor, estão batendo de frente com os códigos sociais do patriarcado, assim como com as ideologias conformistas da cultura predominante.

Susanna se manteve na vida de Pasolini como alguém insubstituível. Mas o poeta já não via a mãe em função de um ideal poético. Ela passou a definir um grupo de traços de caráter mais geral e valores sociais que inspirariam Pasolini em seus trabalhos futuros. Na obra de Pasolini, as mulheres são, ao mesmo tempo, uma das muitas categorias sociais oprimidas e também uma categoria particular – especialmente em seus filmes. Uma categoria particular porque elas indicam, elas significam as “origens” (quer dizer, o ponto inicial e não contaminado da vida) de uma forma que, para Pasolini, nenhum homem poderia.

Por mais apocalíptica que seja a visão de Pasolini, a mulher sempre era capaz de restaurar sua esperança na existência. A inocência feminina denunciava e constituía um antídoto para se resistir ao ataque da cultura neo-capitalista. Cultura que era uma forma de morte para o ser humano autêntico. Com o tempo, Pasolini deslocou Susana, de signo do presente ela passa a signo do passado. Pasolini também via a si mesmo como parte desse passado. Escreveria em 1962: “Eu sou uma força do passado, meu amor repousa apenas na tradição”.


“Enquanto cineasta, Pasolini tomou o passado em suas mãos, utilizando-o continuamente em dois sentidos. Utilizou pessoalmente, para revelar seus desapontamentos e aspirações. [Publicamente, ele o utilizou] para condenar as mudanças que ocorreram no Ocidente. O que começou no final dos anos 1930 como o itinerário poético de auto-descoberta através de sua terra natal e do amor de sua mãe, tornou-se resistente fundação para profundo criticismo social, tanto nos livros quanto na tela de cinema” (5).

Notas:

1. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Toronto: University of Toronto Press, 2007. P. 236n53.
2. Idem, p. 236n54.
3. Ibidem, p. 36.
4. VIANO, Maurizio. A Certain Realism. Making Use of Pasolini’s Theory and Practice (1993), pp. 123-5 In RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 237n64.
5. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 44. 


14 de jan. de 2009

As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (VII)

Susanna (II)


Por Favor Não Desapareça

No final dos anos 50 do século 20, Pasolini estava bem estabelecido em sua carreira. Além de seus poemas, havia escrito dois romances importantes sobre a classe baixa romana, Ragazzi di Vita e Una Vita Violenta. Havia feito também muitos amigos. Pasolini vivia numa bela vizinhança com sua mãe e podia conseguir seus encontros eróticos com rapazes. Mas as contradições emocionais de sua promiscuidade secreta, e as contradições ideológicas de seu status intelectual (um experiente burguês que se dedicava ao subproletariado em seus trabalhos) aprofundaram os efeitos de sua existência aflita. (imagem acima, Susanna em O Evangelho Segundo São Mateus)

Como os personagens subalternos posteriormente retratados em seus filmes, Pasolini via a si mesmo como vítima de uma sociedade hipócrita e conformista. Nessa época, ele achava que toda a sua vida sinalizava uma forma de vida fora de moda, seus instintos baseados na paixão representando um estilo de vida que a sociedade não compreende ou aceita mais. Pasolini via a si mesmo como um sobrevivente, sozinho, um “Outro”, alguém fora das normas.

A única luz ou fonte genuína de esperança nesse mundo era poder estar sob olhar de uma única e velha mulher: Susanna. Pasolini nutria uma fé nela como se fosse uma religião, a coragem dela lhe dava força, o amor dela perdoava seus excessos e o cheiro dela, vindo do passado, o salvava da aniquilação. Ainda que estivesse com quase 70 anos no início dos anos 60 do século passado, Susanna incorporava o ideal da Mãe Jovem na mente de Pasolini. Não apenas ele começou a criar figuras maternas que eram inequívocas descrições de Susanna em seus poemas, como passou a fazê-la atuar em alguns de seus filmes.

“A ligação pessoal de Pasolini com sua mãe não era considerada incomum, dado que o mammismo foi relativamente comum na cultura da época. Quer dizer, era perfeitamente normal para homens não casados viver com suas mães, mesmo em idades mais avançadas. Qualquer consideração adicional da relação deles e coabitação pela vida toda deve ser colocada sob a rubrica da interpretação psicanalítica” (1) (imagem ao lado, Anna Magnani como Mamma Roma; abaixo, Accattone)

Na época da publicação de sua nova coleção, Poesia in Forma di Rosa (1964), a vida de Pasolini havia mudado. Tinha dirigido quatro filmes (Accattone, Mamma Roma, A Ricota, A Raiva), viajou pelo mundo, e escrevia em jornais. Denunciava o conformismo da classe média italiana e a cultura do consumo por homogeneizarem o país. Apesar das diferenças culturais e econômicas entre norte e sul da Itália, ou entre as classes sociais, Pasolini observou a maioria dos italianos ser dominada por motivações materialistas e ideais pequeno-burgueses.

Sua desconfiança de que a Esquerda não conseguiria parar essa tendência aumentou. Poesia in Forma di Rosa mostra o pessimismo e a falta de esperança de Pasolini de que as autênticas raízes das culturas e subculturas italianas sobrevivam a esse massacre. Mesmo as composições dedicadas a Susanna mostram a luta dele para manter viva a Mãe Jovem. Em Supplica a Mia Madre (1961), Pasolini roga para que Susanna continue viva. Aqui o poeta mostra como o amor de sua mãe está no centro de contradições não resolvidas. Enquanto, por um lado, o amor dela completa o filho, por outro, isso o isolou e casou dor, levando a uma exclusividade que o condenou à solidão e o acorrentou como um escravo.

“Prenunciando os modos intersubjetivos dos pares mãe-e-filho nos filmes posteriores, as identidades dos sujeitos nesse poema se misturam, e o pedido do poeta à Susanna constitui um apelo simultâneo para ele mesmo não perder de vista suas origens e não deixar de acreditar naquilo que é bom e sem contaminação” (2)

Pasolini escreveu Supplica a Mia Madre no mesmo ano em que dirigiu seu primeiro filme, Accattone (1961). Seria natural que seu trabalho na poesia influenciasse seu retrato da mulher na tela. Entretanto, como a classe média italiana havia mudado seus valores, e a autenticidade humana, na opinião de Pasolini, estava desaparecendo, símbolos poéticos como a Mãe Jovem tornavam-se fontes menos tangíveis de inspiração. Como resultado, muitas personagens femininas de Pasolini refletiam a influência problemática de uma nova hegemonia cultural indiferente aos marginais e aos pobres. Essa mudança de Pasolini, das áreas rurais do Friuli para a Roma do pós-guerra, inspiraria mudanças em sua descrição das mulheres.

Os personagens de seus filmes iriam retratar a realidade da opressão e da marginalização social. O universo feminino que Pasolini havia conhecido no Friuli de sua infância e adolescência agora se tornam um ponto de referência ideológica e uma fortaleza para interesses de natureza social e política. (imagem acima, à esquerda, Silvana Mangano como Jocasta em Édipo Rei. Pasolini dizia que Mangano lembrava sua mãe, até fez com que ela usasse roupas de Susanna em cena)

“Quer dizer, sua transferência geográfica teve implicações emocionais e ideológicas que deram novas dimensões a suas personagens, especialmente a realidade da marginalização social e da opressão. Prostituição, desonestidade, proeza sexual, manipulação, e mesmo hipocrisia poderiam agora definir suas figuras femininas na tela. Apesar da vasta maioria das mulheres de Pasolini continuar sendo fundamentalmente seres bons, com uma inocência inerente baseada em trabalho duro e tradição, essas personagens não eram Mães Jovens unidimensionais que simplesmente incorporavam a vida e a morte. Pelo contrário, sua aparência e comportamento frequentemente contradiziam as maneiras simples da Madre Fanciulla, refletindo a realidade dura por baixo da superfície das coisas” (3)

Notas:

1. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Toronto: University of Toronto Press, 2007. P. 25.
2. Idem, p. 34.

3. Ibidem, p. 35.

13 de jan. de 2009

As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (VI)

Susanna (I)


Susanna era a mãe de Pasolini, ela influenciou profundamente sua visão de mundo e seu trabalho como poeta, romancista e cineasta. Podemos vê-la na tela participando em vários filmes do filho: Comícios de Amor (Comizi D’amore, 1963), O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo, 1964), Teorema (1968, imagem acima). Ela não participou em Édipo Rei (Oedipus Rex, 1967), mas Pasolini fez com que Silvana Mangano, a atriz que interpretava Jocasta, usasse roupas de sua mãe. Muito já se falou dos elementos autobiográficos nos filmes de Federico Fellini, mas no caso de Pasolini pode-se dizer que essa tendência alcança dimensões sócio-politico-antropológicas, além de psicanalíticas. Susanna é como uma chave que pode desvendar muitos elementos incorporados nas mulheres presentes nos filmes de Pasolini.

Arqueologia da Mãe

A mistura que Pasolini fez entre as dimensões privada e pública de sua vida estaria enraizada numa dicotomia entre os universos materno e paterno. Nessa dialética entre o pessoal e o político, as mulheres desempenharam o papel de mediador. Sua mãe, Susanna Colussi, é de uma família de camponeses que passou à pequena burguesia devido à produção de aguardente do pai. Já Carlo Alberto, o pai de Pier Paolo, vinha da nobreza de Ravenna (1). Mas quando ele casou com Susanna, já havia desperdiçado sua fortuna e abraçado a carreira militar.

Susanna não se casou por amor, mas por pressão social – a comunidade sabia de seu caso; além do que ela já estava com trinta anos de idade e não pretendia ficar para tia. A relação do casal não era tranqüila, o que deixou marcas em Pasolini. Susanna era uma católica não praticante, com um “sentimento religioso natural e poético”. Ela dava grande valor à lealdade, ao trabalho e ao altruísmo. Amava Pier Paolo e ele retribuía. Para Pasolini, ela sempre estava com a razão nas brigas com Carlo Alberto. Susanna amava poesia e incentivou os talentos de seu filho, que com sete anos queria ser capitão da marinha e poeta – o que mostra a vontade de juntar os dois lados de sua vida. Essa divisão acabaria por influenciar sua visão dos domínios masculino e feminino em sua poesia. A pós a morte do pai, Pasolini admitiu que a dependência em relação a sua mãe o levou a rejeitar o pai prematuramente (2).

Carlo Alberto era um militar defensor do fascismo de Mussolini. Enquanto Susanna, uma professora primária, era reservada e distante, o marido era público e irritável. Casaram-se em 1921, em Casarsa della Delizia, na região de Friuli, ao norte da Itália. Pasolini nasceu em Bolonha em 1922, mas sempre considerou Casarsa seu autêntico lugar de origem. Ele via Casarsa como uma espécie de paraíso perdido, onde nem a Segunda Guerra Mundial, nem o neocapitalismo tocariam. Sua defesa do idioma friulano seguia essa tendência também, em 1942 escreveu seu primeiro livro de poemas. Recebeu elogios, embora tenha sido considerado escandaloso (a primeira de muitas vezes que o trabalho de Pasolini recebeu esse carimbo) pelo seu conteúdo sexual misturado a imagens religiosas e elementos de morte.

Durante a era fascista, qualquer forma de regionalismo (como escrever em friulano), mesmo na literatura, era considerada uma provocação ao governo (3). Sua tese sobre o poeta Pascoli (que também escreveu em seu dialeto local), cuja temática enaltecia a infância como um período mítico-religioso onde os sentidos não estão condicionados pelo social, aponta talvez a origem da crença de Pasolini na juventude como o tempo em que se tem fé nos instintos. (imagens ao lado e acima à esquerda, Susanna como Maria em O Evangelho Segundo São Mateus)

Em 1949, mãe e filho se mudam para Roma, em função de um escândalo em torno da homossexualidade de Pasolini – embora haja evidencias de que as motivações de seus detratores eram políticas. Sem uma presença masculina forte na família, seu pai havia morrido, os conceitos de beleza, bondade, e autenticidade reduziam-se a Susanna. Fora algumas primas e tias, Pasolini conheceu algumas mulheres na época da universidade, quando colaborou com algumas que muito influenciaram suas posições futuras sobre fascismo, sexualidade, poética, morte, realidade, amor.

Susanna na Poesia de Pasolini

As personagens femininas de Pasolini não refletem as figuras femininas intelectualmente fortes de sua vida, mas a simples bondade de Susanna e a vitalidade terrena de Casarsa e seu povo. A poesia de Pasolini não só marca o início de sua trajetória artística como introduz e desenvolve temas que reaparecerão em seus romances e filmes. Seja qual for a época, sua visão poética gira em torno de Susanna e o ambiente rural de Casarsa. (imagem ao lado e abaixo à direita, Susanna em Teorema)

Em sua primeira coleção de poesias, Poesia a Casarsa (1942), algumas figuras femininas aparecem e poderiam ser entendidas como um “muitos” comunal ou um “ser” universal. Figuras simbólicas, “arquétipos rústicos” da mulher ou da garota. São figuras joviais imersas no ambiente semi-idílico que Casarsa representa para Pasolini e que ele considera autênticas – o conceito de vida autêntica acompanhará o poeta em toda a sua futura crítica da perda da autenticidade da vida social italiana. Essas mulheres podem estar grávidas (vitalidade) e ao mesmo tempo remeterem à morte (como em Il Fanciullo Morto) (O Garoto Morto), podem ser pessoas inocentes e simples e representar o arquétipo da vida e seu complemento (a morte) (Madre Fanciulla) (Mãe Jovem) (4), ou a mulher pode ainda aparecer sempre casta em comportamento e modesta aparência (personificando o mistério da vida que permite ao homem renascer) (La Megglio Gioventù, A Melhor Juventude, publicado em 1954).

O poema Suíte Furlana (1944-9) descreve a relação entre a vida e a morte através de uma mulher. Para Pasolini, conceito de Mãe Jovem (Madre Fanciulla) é essencial. A simplicidade e integridade desta mulher é uma verdade que ele precisa preservar a todo custo. “É como se a sobrevivência da jovem mãe pudesse garantir a própria proteção do poeta num mundo que está se tornando imune aos seus sentimentos” (5). A Mãe Jovem poderia ser uma mulher universal, Maria (como em L’annunciazione, de 1943). As noções de vida e vitalidade continuaram a se centralizar na figura materna. Entretanto, a Mãe jovem adquire novos traços de significância política a partir das novas coleções de poemas, L’usignolo della Chiesa Cattolica (O Rouxinol da Igreja Católica, 1958) e La Religione del Mio Tempo (1961).

Em A un Figlio non Nato (A um Filho não Nascido, 1958), Pasolini se refere a uma prostituta “inocente” chamada Franca. Mulheres como ela, as prostitutas em geral e seus cafetões, intrigaram Pasolini desde sua chegada a periferia de Roma. Em sua opinião, esses dois personagens do subproletariado romano irradiam pureza. Precisamente porque eles são excluídos da sociedade, Pasolini acredita que os gestos de putas e cafetões, sua interação e existência de sobreviventes, são tão inocentes quanto aqueles dos fazendeiros do Friuli que o poeta conheceu na infância e adolescência. Em meados da década de 50, Pasolini escrevia e colaborava em roteiros que retratavam Roma e prostitutas, como em Noites de Cabiria (Le Notti di Cabiria, direção Federico Fellini, 1957), A Garota na Vitrine (La Ragazza in Vetrina, direção Luciano Emmer, 1961) e A Morte (La Commare Secca, direção Bernardo Bertolucci, 1962) (6).

Como nos poemas anteriores, Pasolini se refere aos elementos da natureza (sol, rio, maternidade) para marcar a vitalidade genuína de Franca (7). A ponte onde Franca espera por seus clientes foi fruto da colaboração entre fascistas e democrata-cristãos – partido político que dominou o pós-guerra na Itália, com implicações evidentes para o pensamento político antifascista de Pasolini. A ponte representa a “autoridade” e a falsa grandeza, comparada à existência humilde e genuína de Franca. A ponte também é um símbolo do futuro, e Franca do passado. A partir dessa oposição, Pasolini pode dizer à criança não nascida que ele não lamenta que ela não tenha chegado a existir.

Aqui, a reflexão poética sobre o nascimento junta-se à vida e a morte numa única imagem. A memória de Franca (o passado) é positiva, lembra dias de trabalho gratificante e consciência social. Tudo em contraste com “este mundo”, o opressivo presente que a criança não verá. *

Notas:

* As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (V) encontra-se no arquivo de setembro de 2008.

1. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Toronto: University of Toronto Press, 2007. P. 15.
2. Idem, p. 232n9.
3. Ibidem, p.233n16.
4. Em italiano, fanciullo significa “garoto entre os seis e doze anos”. Mas o feminino, fanciulla, pode indicar também uma garota de vinte anos. Baseado nisso, traduzi Madre Fanciulla por “Mãe Jovem”.
5. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 25.
6. Idem, p. 235n43.
7. Ibidem, p. 28.

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